Violência doméstica contra a mulher se combate com oração e denúncia


Cena do clipe “A Voz” de Cassiane (Reprodução)

Polêmico videoclipe da cantora Cassiane evidencia erro grave dentro de algumas igrejas evangélicas que é espiritualizar todas as questões sociais.

O clipe “A Voz”, da cantora gospel Cassiane, recebeu muitas críticas. Lançado no dia 17 de julho pela gravadora MK Music, o trabalho trata sobre um tema muito sensível que é a violência doméstica sofrida pelas mulheres.

A letra da música comenta sobre a voz de Deus que “acalma o mar, faz demônios saírem, pode curar e restaurar a vida. É a mesma voz que me chama para sentar à mesa. Voz que dá perdão e emudece os que julgam”. Até aí, nada de errado.

O problema no clipe são as cenas que mostram uma mulher sendo agredida, dentro de casa, por um homem alcoólatra. Ela teve dinheiro roubado por ele, aparece com hematomas no braço e olho roxo. As cenas mostram discussões, empurrões e tapas sofridos por ela. A violência doméstica foi retratada em detalhes.

A mulher resolve sair de casa. Deixa um bilhete e uma Bíblia sobre a cama e vai embora. No bilhete, escreveu que está orando pelo marido e que o perdoa. Ele lê o recado e as imagens sugerem que o homem aceita a mensagem da restauração. A última cena a mostra andando na rua e segurando a Bíblia Sagrada. De repente, ela se encontra com o agressor que também tem a Bíblia na mão. Ambos dão um sorriso e o clipe encerra.

As pessoas não gostaram do que assistiram. Por que a polêmica? As críticas, feitas por entidades evangélicas e não evangélicas, foram porque o clipe romantizou o grave problema da violência sofrida pelas mulheres dentro de casa, não comentou sobre a denúncia e não divulgou o número 180 que é o canal da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

As redes sociais se manifestaram. Até o fechamento deste artigo, o videoclipe no canal da MK Music, no YouTube, obteve 17 mil likes (que significa “gostei”), 20 mil deslikes (“não gostei”), 306.427 visualizações e 7.500 comentários. Já no Facebook, no perfil oficial da cantora Cassiane, foram 32 mil curtidas, 3,8 mil comentários e 2,3 mil compartilhamentos.

As críticas foram as mais diversas, apesar da grande influência da cantora no segmento evangélico com uma carreira de 39 anos. No Facebook, um homem escreveu que amava Cassiane demais e a ouvia desde criança. Disse que, “no caso específico do clipe, eu fui um dos que criticou porque não podemos, ainda que no espaço da , passar pano em um problema tão grave como a violência contra a mulher. Sei que você não é conivente com isso, mas os erros existem para serem corrigidos. Espero que a MK Music retire o clipe do ar ou regrave as cenas”.

No Twitter, uma mulher escreveu “já vi mulher em igreja aguentando marido que bate, trai, mau caráter. E pior: é sinal de que a mulher está orando pouco. O que Cassiane fez é um desserviço às mulheres agredidas e violentadas. Não faça como a cantora. Denuncie a violência contra a mulher”. Um rapaz escreveu que o clipe era “cruel, violento, desonesto e criminoso. Romantizar qualquer tipo de violência é perversidade”.

Ainda no Twitter, outro homem disse que “o número de casos de violência contra a mulher aumentou em São Paulo na quarentena. De acordo com esse clipe, em caso de agressão, a mulher deve orar e perdoar. Não. Mulher, em caso de agressão, disque 180 e denuncie”. A repercussão do clipe também aconteceu fora do mundo evangélico. A imprensa publicou reportagens. O Correio Braziliense destacou ao assunto com o título “Cassiane muda clipe após ser acusada de romantizar violência”. Há ainda pedidos para que o vídeo saia do ar ou seja modificado.

A mudança do clipe

Diante da repercussão negativa e da pressão nas redes sociais, a gravadora MK Music mudou o clipe. Manteve todas as cenas já mostradas no roteiro original, mas gravou três novas cenas que foram incluídas. Uma cena mostra a mulher ligando para o número 180 para denunciar o marido. Depois, outra cena mostra o homem na frente de um bar no momento que um policial o prende. Ao final, aparece uma mensagem informando que violência doméstica é crime e deve ser denunciada.

Em nota publicada no Facebook, Cassiane disse que recebeu vários ataques e julgamentos de pessoas que dizem pregar o amor, mas são insensíveis e não refletiram sobre o histórico de sua vida, sobre se o clipe foi proposital ou uma falha. A cantora reconheceu que errou e informou ao público que é a favor de denúncia:

“Me atacam como se jogassem no lixo toda uma história. Deus me conhece e sabe que sou a favor da denúncia. Nunca falaria para qualquer pessoa para não denunciar e viver sob agressão. Incentivamos no clipe a vítima, mesmo guiada pela fé, a romper essa história e mudar de postura. Os inimigos de Deus não creem que Ele pode, sim, fazer esse milagre de transformar qualquer pessoa. Eu creio e vou crer até o fim. Sou humilde e aceito que houve uma falha. Um erro em não expor a denúncia explicitamente”.

Também no Facebook, a MK Music publicou nota afirmando que lançaria nova versão do vídeo em respeito às dores de muitas vítimas. Disse que o roteiro original do clipe não foi compreendido pelas pessoas e pediu desculpa a quem se sentiu ofendido.

Cassiane reconheceu a falha ao não citar a denúncia. Consertou o erro. Esse fato é muito relevante. Por ter realizado alterações no clipe, a cantora recebeu várias mensagens de apoio como “você é uma bênção, Cassiane. Errou e pediu perdão. Deus é contigo. Fica firme”. Outros escreveram “sua atitude em reconhecer que houve uma falha, mesmo sem intenção, demonstra que você é uma pessoa sensível á causa. Cabeça erguida e força. Que Deus te abençoe”.

Uma mulher escreveu que “o importante foi que corrigiu o erro. A finalidade foi mostrar que Deus pode restaurar qualquer relacionamento”. Uma mulher chamada Maria (o sobrenome ficará em sigilo para resguardar a identidade da pessoa) disse que perdeu os pais aos 12 anos de idade. Diante do problema, pensou em suicidar-se. “Se não fosse seus hinos eu teria me matado. Lembro que eu estava para me matar. Comecei a ouvir os seus hinos e não me matei porque os seus louvores me encorajaram”, escreveu.

O erro do clipe e a cosmovisão evangélica

No fundo, qual o maior erro do clipe? A maior falha do vídeo foi tratar um problema tão sensível na sociedade brasileira de forma superficial e não deixar claro que violência doméstica é crime que deve ser denunciado.

Quando se romantiza a violência, está contribuindo para a perpetuação do machismo, para a injustiça porque o agressor criminoso não é punido, para a vítima ficar ainda mais desprotegida e para a continuidade do crime.

O clipe falhou ao dizer que a mulher deve somente orar e perdoar. Na verdade, deve orar e agir. A primeira versão do clipe deveria ter dito que a mulher deveria denunciar o marido agressor.

Existe um problema muito grave dentro de algumas igrejas evangélicas que é espiritualizar todas as questões sociais. Muitos líderes, ao fazer aconselhamento cristão, dizem para as mulheres evangélicas não denunciarem os maridos agressores. Aconselham que elas devem somente orar e esperar o agir de Deus. Isso é machismo. Essa cultura errada precisa mudar dentro de algumas igrejas evangélicas.

É igualmente cúmplice da agressão um líder que desincentiva a denúncia. Enquanto dizem para a mulher orar, ela permanece dentro de casa sendo agredida junto com os filhos. Não existe nenhum respaldo bíblico para afirmar que uma mulher deve suportar e se submeter à agressão. Nada na Bíblia justifica o ato de suportar o olho roxo, receber tapas, ter o dinheiro roubado, sofrer abuso psicológico e verbal com palavras depreciativas. Sem falar nos estupros praticados dentro de casa por maridos que forçam a relação sexual quando a mulher não deseja.

A Bíblia nunca incentivou a agressão física. Pelo contrário. Diz que cada pessoa deve considerar a outra superior a si mesma (Filipenses 2:3-4). O amor, o respeito, o diálogo e a justiça são valores pregados pelas Sagradas Escrituras e recomendados para a família cristã. Eu desafio um líder religioso a sofrer na pele a agressão e ficar calado em casa somente orando.

Muitos homens são omissos quanto ao problema porque não são eles que têm os dentes quebrados, ficam com o olho roxo, a pele marcada pelas surras e alma dilacerada pelas palavras ofensivas e humilhantes.

Analisando outro aspecto do clipe da cantora Cassiane, nota-se que não há nada de errado nas cenas que mostram a mulher fazendo oração. Também não há nada de errado na vítima perdoar o agressor. A postura do perdão é bíblica e um benefício para ambos os lados.

Quem perdoa é beneficiado porque não carrega o peso da mágoa e do ódio no coração. A medicina diz que problemas psicossomáticos acarretam problemas psicológicos e doenças físicas. A falta de perdão abre espaço para a pessoa sofrer esses danos. E quem recebe o perdão tem a chance de refletir sobre o erro cometido e mudar de vida.

Também não existe nenhum erro em crer que Deus pode mudar a vida das pessoas, seja se um homem alcoólatra e agressor como é o caso do personagem retratado. Os evangélicos acreditam que Deus pode restaurar o coração das pessoas, desde que elas estejam abertas às mudanças. Isso foi retratado muito bem no clipe. Aliás, os evangélicos não só discursam que criminosos podem ser transformados como trabalham para que isso aconteça por meio de projetos sociais nos presídios, nas casas de recuperação e nas igrejas.

O erro do clipe está em só mostrar um lado, apenas apontar a oração como saída e não enxergar o enorme campo social que esse tema envolve. O problema do clipe está em não ter dito inicialmente que violência doméstica é crime e não ter incentivado as mulheres a irem à delegacia fazer boletim de ocorrência contra o agressor.

O problema do vídeo é mais sério e mais profundo. Mostra uma cosmovisão errada dentro de um contexto de ideologia do perdão cristão ensinado nas igrejas. Há um excesso de espiritualização da questão. Por conta dessa cultura errada, muitos grupos de mulheres se organizaram dentro das igrejas evangélicas para reagir e incentivar a denúncia. Muitos homens também se posicionaram.

Em 2019, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) disse aos pastores e padres para não aconselhar a mulher que é agredida fisicamente pelo marido a orar e esperar em Deus. Disse que os líderes religiosos deveriam tomar outra postura e dizer para as vítimas evangélicas irem à delegacia denunciar a covardia e o crime.

O Conic enfatizou que os pastores e padres são cúmplices também ao dizer para a mulher somente orar. Um recado forte, mas à altura da gravidade dos fatos e da necessidade de uma ação mais enérgica e de um real enfrentamento do problema dentro das igrejas evangélicas e católicas.

Os números da violência

Outro ponto que é necessário refletir, a partir da polêmica, é o atual momento que o Brasil atravessa com a pandemia da Covid-19. Várias pesquisas e reportagens produzidas mostram que a violência doméstica contra a mulher cresceu durante o isolamento social. O aumento da violência acontece em todo o Brasil, mas vamos comentar os números de dois estados.

De acordo com O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), aumentou em mais de 50% os casos de denúncias desde que o isolamento começou em março. A Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) lançou uma cartilha explicativa sobre a violência doméstica mostrando como procurar ajuda. Inclusive a cartilha recomenda que a mulher conheça melhor a Lei Maria da Penha. A cartilha pode ser acessada pelo link http://www.emerj.tjrj.jus.br/publicacoes/cartilhas/violencia-domestica/versao-digital/index.html.

Em Minas Gerais também ouve aumento de casos de violência em casa. A pesquisa é um retrato de tensão vivida pelas famílias no ambiente confinado. Foi realizada em conjunto pela Crisp-Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto Olhar e Netquest. A pesquisa aponta que dois, em cada cinco lares da grande Belo Horizonte, sofrem agressões em tempos de pandemia. O estudo citou as várias formas de violência doméstica vivida por 35,8% dos 2.531 entrevistados em todo o Brasil. Mas em Belo Horizonte e região metropolitana esse percentual chegou a 39,7%. A pesquisa aconteceu entre os dias 16 a 21 de abril de 2020.

Citamos apenas Minas Gerais e o Rio de Janeiro, mas sabe-se que essa rotina de agressão física e verbal se repete em todo o Brasil. Outro ponto importante é dizer que ambas pesquisas citadas são gerais, abrangem mulheres de todas as classes sociais, religiões e idades. Mas existe um estudo específico sobre a agressão sofrida pelas mulheres evangélicas. É um projeto realizado no ano de 2016, pela teóloga Valéria Cristina Vilhena, publicado no livro “A igreja sem voz – análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas”. De acordo com essa pesquisa, 40% das mulheres vítimas de agressões físicas e verbais dentro de casa se declaram evangélicas.

Vale dizer que esse estudo é relevante para mostrar uma realidade pouco debatida nas igrejas. Ainda é importante dizer que, ao fazer uma denúncia pela internet, pessoalmente na delegacia ou via telefone, a mulher não é perguntada sobre qual religião professa. Ou seja, a questão religiosa não está sendo levada em consideração quando as autoridades públicas fazem o levantamento estatístico da violência doméstica no Brasil. Um motivo a mais para validar o estudo da teóloga Valéra Cristina.

Além da falta de dados oficiais do governo federal e dos governos estaduais sobre o aspecto religioso da vítima, o tema é ainda sensível porque sabe-se que muitas mulheres estão tão envolvidas dentro do problema familiar que não sabem identificar os tipos de agressões que vivenciam. De acordo com a Lei Maria da Penha, capítulo II, art.7 º, incisos I, II, III, IV e V, estão previstos cinco tipos de violência familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A íntegra da lei pode se estudada no site do Instituto Maria da Penha que é uma instituição de luta contra a violência (www.institutomariadapenha.org.br).

Como denunciar

O importante é esclarecer que a mulher precisa pedir ajuda, sim. Deve denunciar. Os canais de denúncia são: Disque Denúncia 180; Polícia Militar 190; presencialmente em qualquer delegacia; virtualmente porque quase todos os estados adotaram o boletim eletrônico de ocorrência. No boletim de ocorrência pela internet existe um campo específico para a violência doméstica. Há ainda outras maneiras de pedir ajuda.

Em Brasília, por exemplo, foi criado um símbolo. A mulher faz um “X” de batom na palma da mão. Ao mostrar esse símbolo nas farmácias, já é entendido como um pedido de socorro.

Denise Santana é jornalista, teóloga e professora. Tem mestrado em Teologia pela Escola Superior de Teologia, no Rio Grande do Sul. Pós-graduação em MBA Gestão da Comunicação nas Organizações pela Universidade Católica de Brasília. Bacharelado em Comunicação Social, Jornalismo, pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília. Licenciatura plena em História pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília. Bacharelado em Teologia pela Faculdade Evangélica de Brasília.

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